Diziam à época que um dos critérios pra trabalhar no DIEESE era ser corintiano. A razão é que era o clube de predileção do Diretor, como ficaria claro pra quem o conhecesse. Parte do treinamento, que acontecia no último dia, consistia de uma sessão longa em que o Barelli contava um pouco da história e da linha de trabalho do Departamento (ou da "firma" como alguns preferiam chamar com um tom de leve ironia). Falou longamente, com a calma de sempre, aquele tom de voz manso e que se mantinha inalterado, entremeando suas ideias à exposição de momentos tensos ou críticos da trajetória do DIEESE e à contação de casos hilários protagonizados por colegas da casa em assembleias e mesas de negociação. No final, perguntou quem queria ir ao jogo do Corinthians naquele dia. Na dúvida se aquilo era uma pegadinha ou um último teste, declinei do convite.
Pra quem vinha de anos de militância estudantil, não era fácil aceitar e incorporar o essencial do projeto do DIEESE, que era ser uma assessoria de sindicatos de trabalhadores independentemente da filiação política de cada entidade e de sua direção. O Barelli encarnava justamente esta ideia, a de que o Departamento tinha um lado, o dos trabalhadores, mas que não pretendia decidir as polêmicas e questões políticas pelos trabalhadores ou suas direções, nem se alinhar a partidos. Coisa não sem problemas, mas que só pode ser entendida à luz da história da instituição e, sobretudo, da sua resistência no período da ditadura militar. História bonita, complexa e tumultuada, e que não pretendo discutir aqui, muito menos simplificar. O fato é que o DIEESE era uma instituição plural, tão plural que aceitava de braços abertos até mesmo nós que não éramos corintianos.
Meses mais tarde, voltei a me encontrar com o Barelli em São Paulo. Era novembro de 1989, Lula e Collor disputavam o segundo turno e havia uma forte expectativa combinada com a preocupação sobre o que poderia acontecer depois do dia 15. Se Lula ganhasse naquele ano, havia duas certezas. A primeira, de que muitos de nós seriamos chamados a participar do governo (o que despertava a preocupação com o que seria do Departamento, desfalcado de alguns dos seus melhores quadros, a começar pelo Diretor). A segunda, de que aquele seria um governo de esquerda (como não seria o Governo Lula quando ele finalmente aconteceu, 13 anos mais tarde), com todos os riscos que isso implicava, sobretudo em termos da reação previsível e violenta da direita.
Lula não ganhou aquela eleição, mas o Barelli acabou identificado com a candidatura dele e, em 1990, deixou a direção do DIEESE para coordenar o Governo Paralelo, uma tentativa de fazer aqui algo na linha dos 'shadow cabinets' britânicos, e que acabou não dando muito certo. Depois foi ministro do Itamar, secretário do Covas e, finalmente, deputado. Neste período, nunca mais estive com ele, mas guardei a memória de uma pessoa com quem nem sempre compartilhei preferências políticas ou futebolísticas, mas que era generoso, digno, leal, companheiro. Guardo com afeto as mensagens que, enquanto ele esteve à frente do DIEESE, enviava periodicamente a cada escritório regional ou subseção, mensagens que chegavam por telex e que começavam invariavelmente com uma saudação: "Meus bravos!".
Soube há pouco que o Barelli nos deixou na noite de ontem. Não conheci sua família -- esposa, filhos, netos --, mas queria dar um abraço em cada um. Conheço, porém, muitos daqueles que compunham ou compõem aquela que foi sua outra família, o DIEESE, com quem compartilho a dor deste dia e deixo minha inteira solidariedade e carinho. Em tempos tão difíceis, sejamos bravos, mais uma vez.
Walter Barelli (1938-2019) |
PS. enquanto escrevia, lembrei deste depoimento que o Barelli deu ao projeto de memória do DIEESE e que conta um pouco de sua vida e trabalho.
Bravo Hugo,
ResponderExcluirtive a honra de ter trabalhado com o Barelli na condição de Secretário-Adjunto de Relações do Trabalho (1993-1994). Também fiquei transtornado com a notícia de seu falecimento, tão logo tive conhecimento de uma comunicação que circulou na internet, veiculada pelo Clemente Ganz.
Um abraço amigo,
Thales Chagas Machado Coelho
PS: seu blog é excelente!
Meu caro Thales, que surpresa boa ler seu comentário! Faz tempo que não nos encontramos, mas o tenho por um velho amigo.
ExcluirAcho que todos que tiveram a chance de conviver com o Barelli se sentem honrados pela experiência e convívio.
Grande abraço e obrigado!