quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Barsa, a enciclopédia

A Folha publicou recentemente uma beleza de matéria pra quem é daquela geração que pegou os tempos áureos das enciclopédias e, dentre elas, a Barsa. Trabalho escolar naquela época era sinônimo de "consultar a enciclopédia". Não sei que fim levou a coleção que havia lá em casa, mas a Mirador Internacional, editada pelo Houaiss, eu guardo até hoje (e olhe que me toma um espaço precioso!).

Algumas coisas parecem se repetir na memória das pessoas que viveram o fetiche da Barsa. Aquele nome estranho no último verbete do último volume (Zwingli), por exemplo. A beleza das capas vermelhas gravadas com letras douradas. O fato de que os livros costumavam ficar numa prateleira mais alta da estante, o que, lá em casa, rendeu alguns tombos mais ou menos graves na tentativa temerária de alcançar algum volume. A pretensão de ler todos os volumes -- li alguns -- assim, de enfiada, verbete por verbete. E, claro, o preço altíssimo da coleção, criando a prática do pagamento em prestações. Também pudera: eram muitos volumes, com encadernação luxuosa e papel de boa qualidade, sem falar no custo da produção do texto.

O artigo me fez lembrar ainda da figura do vendedor de bibliotecas, um sujeito bem apessoado e de boa conversa, que era recebido na sala de visitas das casa de classe média e carregava uma mala com exemplares de amostra dos pesados volumes, além de folders explicativos e cópias de contratos. Profissão extinta, até onde sei. Bem que cabia como personagem de O fim do sem fim, mas não lembro de ver a figura no filme.

O texto traz algumas informações que eu não tinha e que chegam a ser chocantes. Entregar o verbete de Brasília pro Niemeyer não me parece uma ideia sensata, muito menos a ideia de confiar o verbete sobre Ayrton Senna pra sua irmã escrever... insano. Também fiquei surpreso de saber que ainda são vendidos volumes impressos da Barsa, não mais de porta em porta, mas por meio do site BarsaShop, uma modernidade... A propósito, os 18 volumes estão sendo vendidos pela bagatela de R$2.695,00. É preço promocional, quase comprei, mas me contive a tempo... 

Por fim, fiquei curioso de ler a dissertação do Pedro Terres, citada no texto. E curioso, também, de saber o nome do autor da matéria, omitido sem dó pela Folha. Ah, a Folha... Outrora tão importante, hoje... mas isso já é outro assunto.




sábado, 11 de fevereiro de 2023

Sobre Arembepe, Canoa Quebrada e o capitalismo

 Guardadas as muitas e grandes diferenças -- seja do lugar, seja do período e seu contexto político --, Canoa Quebrada foi para a minha geração o que Arembepe tinha sido para a geração que nos antecedeu. Visitei Canoa Quebrada pela primeira vez em 1982 ou 83, quando não havia estrada, energia elétrica ou pousadas. Todo mundo ia pra lá em busca de uma experiência "alternativa", como se dizia então, ou pelo menos pra comprar um anel ou pingente de casco de tartaruga com o famoso desenho da lua e estrela.

A fama do lugar cresceu e, com ela, o 'progresso', despertando justificadas preocupações. Me lembro que, no velho 'Sistema de Bolsas' da FACE (o PET de hoje em dia), chegamos a sonhar com um projeto de pesquisa para estudar in loco e in tempore opportuno a chegada do capitalismo ao extremo sul do litoral cearense, um pretexto mais que apropriado pra justificar uma boa e longa temporada naquela que era uma aldeia isolada de pescadores. Havia sinais claros e preocupantes de monetização das relações locais de produção (gostaram?), como o crescimento do comércio de latões d'água trazidos no lombo dos jegues para viabilizar o banho diário dos turistas ou os valores cobrados em dinheiro, e não em sorrisos, pelo aluguel de ganchos nas casas dos locais, que nos davam o direito de pendurar nossas redes pra passar a noite.

O fato, infelizmente, é que o nosso projeto de pesquisa não foi em frente. Nem chegou a ser escrito porque, apesar de jovens e animados, nós já sabíamos que nem o CNPq, nem a Capes seriam capazes de perceber o que havia de meritório na nossa proposta, frustrando qualquer expectativa de financiamento, por menor que fosse.

Por isso mesmo, devo admitir minha surpresa quando abri o Valor deste final de semana e me deparei com uma matéria sobre Arembepe que, na verdade, é uma resenha de um livro que está sendo lançado e que conta estórias passadas naquela aldeia nos anos 1970. O livro é escrito por três publicitários e jornalistas e não tem qualquer pretensão acadêmica. Mas a matéria menciona a certa altura um estudante de antropologia da Universidade Columbia, de nome Conrad Kottak que, tendo passado 16 temporadas em Arembepe, escreveu um livro com um título que poderia muito bem ser o do nosso malfadado projeto de pesquisa: Assault on Paradise: the Globalization of a Little Community in Brazil.

Li e reli este parágrafo diversas vezes, sem acreditar no que estava dito. Tive que consultar o Google para aplacar a incredulidade e quase recorri ao ChatGPT pra acabar com qualquer dúvida. O fato é que Conrad Phillip Kottak não apenas existe, como é professor emérito da Universidade de Michigan e fez extensos trabalhos de campo etnográficos no Brasil e em Madagascar (este aí sabe viver). O livro -- adivinhem -- também existe: foi publicado originalmente em 2006 e está na quarta edição (atualizada, é claro), e está anunciado na Amazon por US$26.99 mais despesas de envio (ou por míseros R$775,00 na loja brasileira da mesma Amazon, se for de sua preferência).

Resta o consolo de saber que alguém fez o que sonhamos um dia fazer. E a constatação de que, pelo visto, as agências de fomento americanas eram mais sensíveis a este tipo de investigação do que eu podia imaginar naquele longínquo 1982. Bom pra eles.

(Nas fotos: Canoa Quebrada e Arembepe, em outros tempos).