segunda-feira, 29 de julho de 2019

Ainda sobre Marcuse

Herbert Marcuse morreu em 29 de julho de 1979, há exatos 40 anos.

Dos autores de Frankfurt ele foi o mais precocemente traduzido no Brasil, ainda mais se considerarmos a publicação de livros, ao invés de artigos isolados. Eros e civilização apareceu ainda em 1968, pela Zahar, acompanhando a publicação de Ideologia da sociedade industrial no mesmo ano. Na sequência, outros volumes do autor seriam lançados pela editora, como Contra-revolução e revolta, em 1973.

O surgimento destas traduções em plena ditadura militar certamente se explica pela projeção e popularidade que Marcuse assumiu a partir das revoltas de 1968 nos EUA e na Europa. Também se explica pela coragem de um Jorge Zahar, seu editor no Brasil. Verdade seja dita, aquelas primeiras traduções deixavam muito a desejar (estou sendo delicado e até condescendente), de modo que a relativa precocidade do acesso aos seus textos em língua portuguesa nem sempre significou maior facilidade na compreensão das ideias de Marcuse (novamente, não seria injusto dizer que estou sendo brando aqui).

Mais adiante, em 1978, a Paz e Terra publicou Razão e revolução. No final dos anos 1990, um novo surto de traduções proporcionou o lançamento de duas coletâneas de seus artigos. A primeira, publicada pela Paz e Terra com o título de Cultura e sociedade, em dois volumes, seguida de outra lançada pela Editora Unesp sob o título de Tecnologia, guerra e fascismo.

Figura de destaque entre os teóricos da primeira geração da Escola de Frankfurt, não surpreende que o nome de Marcuse figurasse ao lado dos de Benjamin e Adorno no título daquela que foi a primeira obra de um brasileiro a analisar o legado do grupo -- o livro de José Guilherme Merquior lançado pela Tempo Brasileiro em 1969. Curioso mesmo é o que veio depois, o destino tormentoso e pouco afortunado da recepção de suas ideias no Brasil. 


O primeiro sinal de uma inflexão apareceria poucos depois, ainda em meados dos anos 1970, quando do lançamento da coleção Os Pensadores, da Editora Abril, que se constituiria num marco para a divulgação de boas traduções de textos filosóficos no Brasil. No volume da coleção dedicado aos frankfurtianos, o nome de Marcuse e seus textos foram solenemente ignorados. É possível -- e até provável -- que isso tenha acontecido como resultado do que já mencionei: a ampla disponibilidade de traduções dos textos marcuseanos naquela época. De todo modo, não considero que seja inteiramente abusado tomar a ausência de Marcuse naquele volume como um sinal ou prenúncio do que viria em seguida, isto é, da queda veloz e acentuada do interesse por sua obra. Ou muito me engano, ou Marcuse também não mereceu um volume na coleção Grandes Cientistas Sociais que a editora Ática publicou poucos anos depois sob a direção editorial de Florestan Fernandes (mas Benjamin, Adorno e Habermas tiveram seu lugar assegurado nela).

Em resumo, pra quem como eu chegou a idade adulta no início dos anos 1980, é difícil afastar a impressão de que o que se considerava como frankfurtiano naquele momento tinha muito mais a ver com Benjamin, Horkheimer e, sobretudo, com Adorno e Habermas, do que com Marcuse. Foi justamente nos livros daqueles autores que -- com o auxílio de comentários de intérpretes brasileiros, como Rouanet, Freitag e Chauí, e, sobretudo, das traduções espanholas da saudosa editora Taurus e, mais tarde, nas versões inglesas da MIT Press -- eu e meus contemporâneos fomos aos poucos descobrindo e compreendendo a chamada teoria crítica. Numa palavra, se não estou cometendo o erro básico de generalizar para minha geração algo que é apenas o resultado de minha experiência pessoal, tenho a impressão de que Marcuse jamais esteve entre nossas prioridades, muito ao contrário da experiência dos que vieram anos antes de nós.

A hipótese que acabo de enunciar é falsificável, mas não me disponho a compilar os dados que poderiam testá-la. É claro também que nada disso importa além do relato de uma experiência pessoal ou geracional. Finalmente, é óbvio que a obra de um autor ou sua atualidade não se deixam avaliar pelo fato dele ter sido lido ou não, compreendido ou não, por uma determinada geração.

O fato é que os 40 anos da morte de Marcuse passaram praticamente em branco no Brasil e, a julgar pelos jornais de hoje, em boa parte do mundo. O azar é nosso... Mas nem tudo está esquecido e prova disso são os dois números da revista Dissonância lançados recentemente e integralmente dedicados a sua obra.

Esquecido, mas não por inteiro, não é tarde (não mesmo!) para redescobrir Marcuse. Quem sabe agora? Deixo a lembrança.




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PS. leitor amigo, no momento não estou interessado em discutir se Habermas deve ser tratado com frankfurtiano ou não, nem mesmo se a alcunha "Escola de Frankfurt" é adequada para descrever um movimento teórico ou não passa de um guarda-chuva desconjuntado. Isso é só um comentário em tom pessoal e certas liberdades, como o emprego do adjetivo frankfurtiano, servem bem às minhas necessidades aqui e agora. Queira-me bem.

PS 2. fiz uma correção no texto: o livro do Merquior não foi editado pela Zahar, como eu havia mencionado inicialmente, mas pela Tempo Brasileiro (que, a propósito, editou outros textos de e sobre frankfurtianos nos anos 1970 e 1980). Agradeço ao Ricardo Fenati por me alertar sobre o erro.


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