Por outro lado, a recepção das ideias de Marx comporta numerosos problemas e, até mesmo, paradoxos. Nos países em que foi venerado, suas ideias foram simplificadas e distorcidas, apresentadas como uma doutrina monolítica que proporcionaria justificativas para as práticas políticas de regimes francamente autoritários. Em toda parte, seguidores e adversários de Marx estabeleceram uma continuidade direta e estrita entre suas ideias e aquelas que povoaram o marxismo em suas mais diferentes versões. As diferenças que poderiam existir – e certamente existem – entre os conceitos marxianos e as ideias marxistas foram esquecidas ou apagadas.
De fato, as dificuldades envolvidas na recepção das ideias de Marx só podem ser bem entendidas se atentarmos para o fato de que o marxismo se desenvolveu numa época em que o conhecimento dos
escritos de Marx era repleto de lacunas e, por isso mesmo, parcial e inadequado. A doutrina do “materialismo histórico”, por exemplo, foi formulada nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX por autores como Plekhanov, Mehring e Kautsky, muito antes que o manuscrito de A Ideologia Alemã fosse publicado. E, mais decisivo, essa doutrina acabou influenciando a maneira como o manuscrito foi lido e interpretado. Também não foi por acaso que a publicação tardia de obras como os Manuscritos Econômico-Filosóficos e os Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie provocasse o surgimento de longas controvérsias e críticas às interpretações convencionais da crítica da economia política.
Por essa razão – pelo fato de que o marxismo se constituiu antes mesmo que a maioria dos textos de Marx fosse conhecida – compreender a recepção da obra de Marx e as interpretações que foram dadas a suas ideias requer que um entendimento seguro do movimento de edição e publicação de cada um de seus textos. Além disso, conhecer o modo como as obras de Marx vieram a público e o contexto em que foram lidas pode contribuir para uma releitura desses textos em nova chave, para a reinterpretação do pensamento de Marx agora livre das funções ideológicas que pesaram sobre ele no passado.
É o que procuramos mostrar num artigo que acaba de ser publicado na série de Textos para Discussão do Cedeplar-UFMG:
Cerqueira, Hugo. Da MEGA à MEGA2: breve história da edição crítica das obras de Karl Marx, (Textos para Discussão, n° 506), Cedeplar-UFMG, 2014.
O artigo pode ser baixado da base bibliográfica EconPapers: basta clicar no link acima e, em seguida, no link em "Downloads: (external link)". O texto apresenta as principais tentativas de empreender uma edição completa e histórico-crítica das obras de Karl Marx, a Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA): a primeira, liderada por David Riazanov nos anos 1920-30 e, a segunda, o projeto da MEGA2, iniciado nos anos 1970 e ainda em curso. Além de apresentar essas duas edições, o texto discute seus impactos sobre a interpretação do pensamento econômico e filosófico de Marx tomando como exemplo as discussões recentes sobre duas das obras consagradas de Marx: a Ideologia Alemã e O Capital.
Espero que a leitura seja proveitosa. Comentários e críticas são benvindos.
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