A
primeira vez em que ouvi falar de Teodor Shanin foi durante minha graduação.
Alguns de seus textos eram leitura recomendada numa disciplina de
Economia Agrícola, ministrada pela saudosa Maria Regina Nabuco. Ela era
uma professora que, além de competente, era muito entusiasmada, e tinha
retornado há pouco tempo do doutoramento na Universidade de Manchester,
na Inglaterra, onde Shanin lecionava desde 1974. Lembro que a lista de
leituras da disciplina era extensa, um verdadeiro guia pra quem quisesse
entender o assunto.
Naquele tempo, de bibliotecas paupérrimas e em que não havia internet, era comum que cada professor organizasse apostilas com cópias dos textos indicados. As apostilas da Regina eram muitas e alentadas, e incluíam textos de Peasants and Peasant Societies, um volume (um reader) editado por Shanin com trabalhos de referência sobre o campesinato e as relações de produção no campo, temas em que ele tinha se tornado um pesquisador renomado. Eu era ignorante demais pra poder compreender a importância do que estava lendo então e recordo que tinha enorme dificuldade de entender as diferenças entre as várias formas de relações de produção não-capitalistas que nos eram apresentadas. Lembro que acabei fazendo um trabalho em grupo para aquela disciplina, que consistia de alguma econometria bem básica com dados dos censos agrícolas de 1960 e 1975: um desafio pra quem trabalhava com calculadoras Texas ou HP, mas que também não deixava de ser uma forma de escapar do problema de entender aquele emaranhado de conceitos teóricos.
Somente anos mais tarde é que fui ler outro dos livros mais importantes de Shanin, Late Marx and the Russian Road: Marx and the Peripheries of Capitalism, em que ele discute o modo como Marx aborda as sociedades ditas periféricas, como a Rússia: suas particularidades e os desafios de pensar suas formas próprias de transição para a modernidade. Além de capítulos escritos por Shanin e seus colegas, o livro reunia uma versão em inglês da famosa troca de cartas entre Vera Zasulich e Marx, incluindo os vários rascunhos da resposta de Marx que foram descobertos por Riazanov, e que são tão reveladores das dificuldades enfrentadas por Marx em sua reflexão sobre o assunto, bem como textos de Chernyshevsky e documentos do movimento revolucionário Narodnaya Volya, que de algum modo influenciaram a compreensão de Marx sobre a situação russa e, por extensão, dos países periféricos. A publicação deste livro deu início a um debate sobre o tema que se estende até hoje em dia e que venho tentando acompanhar.
Ontem fui surpreendido com a notícia da morte de Shanin na terça-feira, 04/02. Lendo os poucos obtuários publicados até aqui, descobri coisas sobre ele que ignorava completamente: que, quando era adolescente, esteve exilado com a família na Sibéria; que participou da guerra na Palestina em 1948-9, a guerra que levou à independência de Israel; e que criou e dirigiu uma Escola de Ciências Sociais e Econômicas de Moscou (Shaninka), instituição financiada com recursos do fundo criado por Geroge Soros, e que foi parte de um longo esforço empreendido por Shanin, iniciado ainda durante a perestroika, para renovar o ensino de humanidades na Rússia.
Dizem que ele era um tipo quixotesco, dado a encarar desafios tidos por impossíveis, e a levar cada um deles até seu bom termo. O que sei é que ele foi um acadêmico e pesquisador de grande estatura e que a marca característica de seu trabalho era a busca da interdisciplinaridade. Uma marca que que já se evidencia em seus estudos de graduação, cursados em sociologia e em economia, e que se explicita em suas obras, que combinam métodos e recursos teóricos de sociologia, história, economia, política e filosofia. Marca que se deixa também revelar nos autores que Shanin citava como influências determinantes de seu trabalho: Mark Bloch, Alexander Chayanov, Charles Wright Mills and Paul Baran. Interdisciplinaridade que, longe de ser um capricho ou moda, colocou-se como uma exigência para quem, como ele, buscou superar visões simplistas e deterministas dos processos de modernização social, procurando compreender a natureza complexa das sociedades ditas não-desenvolvidas ou em desenvolvimento e desafiando a maneira como a economia convencional ou neoclássica analisa e propõe políticas para estas sociedades. Sua obra fica, certamente, como exemplo e inspiração.
Naquele tempo, de bibliotecas paupérrimas e em que não havia internet, era comum que cada professor organizasse apostilas com cópias dos textos indicados. As apostilas da Regina eram muitas e alentadas, e incluíam textos de Peasants and Peasant Societies, um volume (um reader) editado por Shanin com trabalhos de referência sobre o campesinato e as relações de produção no campo, temas em que ele tinha se tornado um pesquisador renomado. Eu era ignorante demais pra poder compreender a importância do que estava lendo então e recordo que tinha enorme dificuldade de entender as diferenças entre as várias formas de relações de produção não-capitalistas que nos eram apresentadas. Lembro que acabei fazendo um trabalho em grupo para aquela disciplina, que consistia de alguma econometria bem básica com dados dos censos agrícolas de 1960 e 1975: um desafio pra quem trabalhava com calculadoras Texas ou HP, mas que também não deixava de ser uma forma de escapar do problema de entender aquele emaranhado de conceitos teóricos.
Somente anos mais tarde é que fui ler outro dos livros mais importantes de Shanin, Late Marx and the Russian Road: Marx and the Peripheries of Capitalism, em que ele discute o modo como Marx aborda as sociedades ditas periféricas, como a Rússia: suas particularidades e os desafios de pensar suas formas próprias de transição para a modernidade. Além de capítulos escritos por Shanin e seus colegas, o livro reunia uma versão em inglês da famosa troca de cartas entre Vera Zasulich e Marx, incluindo os vários rascunhos da resposta de Marx que foram descobertos por Riazanov, e que são tão reveladores das dificuldades enfrentadas por Marx em sua reflexão sobre o assunto, bem como textos de Chernyshevsky e documentos do movimento revolucionário Narodnaya Volya, que de algum modo influenciaram a compreensão de Marx sobre a situação russa e, por extensão, dos países periféricos. A publicação deste livro deu início a um debate sobre o tema que se estende até hoje em dia e que venho tentando acompanhar.
Ontem fui surpreendido com a notícia da morte de Shanin na terça-feira, 04/02. Lendo os poucos obtuários publicados até aqui, descobri coisas sobre ele que ignorava completamente: que, quando era adolescente, esteve exilado com a família na Sibéria; que participou da guerra na Palestina em 1948-9, a guerra que levou à independência de Israel; e que criou e dirigiu uma Escola de Ciências Sociais e Econômicas de Moscou (Shaninka), instituição financiada com recursos do fundo criado por Geroge Soros, e que foi parte de um longo esforço empreendido por Shanin, iniciado ainda durante a perestroika, para renovar o ensino de humanidades na Rússia.
Dizem que ele era um tipo quixotesco, dado a encarar desafios tidos por impossíveis, e a levar cada um deles até seu bom termo. O que sei é que ele foi um acadêmico e pesquisador de grande estatura e que a marca característica de seu trabalho era a busca da interdisciplinaridade. Uma marca que que já se evidencia em seus estudos de graduação, cursados em sociologia e em economia, e que se explicita em suas obras, que combinam métodos e recursos teóricos de sociologia, história, economia, política e filosofia. Marca que se deixa também revelar nos autores que Shanin citava como influências determinantes de seu trabalho: Mark Bloch, Alexander Chayanov, Charles Wright Mills and Paul Baran. Interdisciplinaridade que, longe de ser um capricho ou moda, colocou-se como uma exigência para quem, como ele, buscou superar visões simplistas e deterministas dos processos de modernização social, procurando compreender a natureza complexa das sociedades ditas não-desenvolvidas ou em desenvolvimento e desafiando a maneira como a economia convencional ou neoclássica analisa e propõe políticas para estas sociedades. Sua obra fica, certamente, como exemplo e inspiração.
Teodor Shanin (1930-2020) |